Por um futuro em que possamos confiar

Artigo de opinião de Pedro Passos Coelho, ex-primeiro-ministro de Portugal, sobre o futuro da Europa
Sobre o futuro da Europa há algo que podemos dizer e que não andará longe de um consenso razoável: o estado de coisas actual, com o seu arranjo institucional e com os seus equilíbrios formais e informais, não é sustentável. Os desafios que temos pela frente, a carga que trazemos de trás, a carência de instrumentos imprescinvdíveis e os impasses institucionais, tudo isto é suficiente para concluir que o estado de coisas actual tem de ser ultrapassado por reformas consistentes e realistas. Isto quer dizer que não precisamos, nem devemos ir à procura de dimensões novas de integração, mas tão-só sermos consequentes com as dimensões de integração que abrimos há já algum tempo, como, por exemplo, a União Económica e Monetária. Concretizando, para termos uma União Económica e Monetária funcional para todos os Estados-membros, e não apenas para alguns; para temos uma UEM que seja igualmente um espaço de convergência, precisamos que ela seja uma União Financeira, isto é, precisamos de concluir a União Bancária com a implementação e suporte orçamental adequado do Fundo Comum de Resolução e com a criação de um Sistema Comum de Garantia de Depósitos. Significa igualmente que precisamos de uma União dos Mercados de Capitais. Uma União Bancária incompleta, ou uma União Monetária sem ser uma União Financeira, condena os Estados-membros mais vulneráveis aos sérios problemas da fragmentação financeira a que assistimos com a eclosão da crise das dívidas soberanas a partir de 2010.
A boa notícia é a de que, de facto, nós sabemos com bastante exactidão aquilo que precisamos de fazer para conduzir essa reforma institucional da União Europeia. Já temos todos os relatórios, todos os livros brancos, todos os documentos de reflexão. Em Maio de 2015, dei o meu contributo para a discussão daquela que é a reforma mais premente da área do euro, aquando do encontro “O Estado da União” no Instituto Universitário Europeu, em Florença. Além da reforma do Semestre Europeu, propus a criação de um Fundo Monetário Europeu. Esta instituição deveria suprir uma lacuna fundamental: a ausência de uma contraparte “económica”, ou de um interlocutor adequado, à acção “monetária e financeira” do Banco Central Europeu. Para isso, o Fundo Monetário Europeu deveria exercer três funcões.
Em primeiro lugar, absorver o actual Mecanismo Europeu de Estabilidade, que lida com a assistência financeira aos Estados-membros em dificuldade, mas que também pode assumir capacidades de recapitalização cautelar de instituições financeiras, ou, como é sugerido no último documento de reflexão da Comissão Europeia sobre o aprofundamento da União Económica e Monetária, constituir o suporte orçamental do Fundo Comum de Resolução.
Em segundo lugar, o Fundo Monetário Europeu poderia integrar os programas de investimento pan-europeu (como o chamado Plano Juncker), assim como os esquemas de apoio a reformas estruturais coordenadas ao nível da zona euro.
Em terceiro lugar, o Fundo Monetário Europeu poderia gerir a função de estabilização para a zona euro, o que implicaria um orçamento comum constituído por programas de “estabilizadores automáticos”, como, por exemplo, um mecanismo (parcial) de subsídio de desemprego ou programas de políticas activas de emprego.
Com estas três funções, o Fundo Monetário Europeu institucionalizaria o suprimento da carência de instrumentos indispensáveis ao bom funcionamento de uma União Monetária, como, de resto, se encontra amplamente documentado. Claro que temos de atender também ao escrutínio democrático do exercício destas funções E para isso afigura-se determinante que quem presidir a esta instituição tenha a sua actividade devidamente publicitada e escrutinada, nomeadamente pelo Parlamento Europeu. Em Maio de 2015, propus que associássemos a governação desta associação a mudanças no funcionamento do Eurogrupo. Assim, o presidente do Fundo Monetário Europeu poderia ser o Presidente do Eurogrupo, que passaria a ser um cargo permanente, isto é, não acumulável com o cargo de Ministro das Finanças nacional, como hoje sucede. Felizmente, em 2017 o Fundo Monetário Europeu entrou na ordem do dia, por assim dizer, e é de toda a importância não perder esta oportunidade.
Com efeito, se sabemos o que precisamos fazer, e se sabemos como devemos fazer, o que nos faltava era sobretudo uma oportunidade política para fazer avançar este projecto de reforma. Ora, parece ser cada vez mais óbvio que essa janela de oportunidade, atendendo aos sinais que nos chegam dos vários Estados-membros, sobretudo após a clarificação da situação política de alguns países sem os quais este passo não é possível (França, Holanda, Áustria), não é infinitamente elástica. Apesar das nuvens que ainda pairam sobre a Itália e a Grécia, a janela de oportunidade abre-se imediatamente a seguir às eleições legislativas federais na Alemanha, no início do próximo Outono, e prolonga-se até às vésperas das eleições europeias de 2019. Teremos condições de liderança e um sentido reformista das novas circunstâncias da relação entre a França e a Alemanha, e é esta oportunidade que não podemos perder. Tem de ser aproveitada abandonando a polarização da Europa em regiões Norte-Sul, ou Leste-Oeste, em que tantos apostaram num passado recente e que tantas dificuldades trouxe aos grupos reformistas pró-europeus. Mas também com realismo e com uma atenção à operacionalização atempada de todos os aspectos desta reforma institucional.
Mais recentemente, o aprofundamento da integração em matéria de Segurança e de Defesa adquiriu prioridade nas agendas europeias. As razões para essa prioridade não são espúrias. As ameaças terroristas, a crescente instabilidade junto das fronteiras externas da União (a sul, a leste e a sueste) e a crise das migrações, constituem fontes de preocupação que não podemos evitar. Além disso, os nossos aliados na relação transatlântica, os EUA, têm dado pelo menos na forma – que em política também conta porque gera receios e intensifica ansiedades – mais outra razão, na medida em que este vazio surpreendente, e espero que temporário, deixado pelos americanos ajuda a chamar a atenção para as vulnerabilidades e deficiências da Europa. Ajuda-nos a trazer-nos às nossas responsabilidades e à clarificação das nossas prioridades geoestratégicas.
A chamada União da Defesa tem de se regrar segundo um pressuposto: a articulação com a NATO. De modo algum podemos permitir que se gere um pretexto para pôr em causa a aliança de segurança comum que nos protege a todos há já várias décadas. A União de Defesa só poderá prosseguir numa lógica de complementaridade, e não de rivalidade, com a NATO. Dito isto, temos muito que fazer nos domínios da operacionalidade das nossas forças, da inter-operabilidade dos nossos sistemas e até da integração dos nossos comandos, o que não quer dizer, nem deverá querer dizer, um Exército Comum Europeu. A partilha de recursos e a progressiva constituição de comandos integrados com forças nacionais têm uma ampla margem de ganhos a vários níveis, e daqui não se deve tirar a consequência da criação de um Exército Comum. Articulação e integração são também os caminhos a seguir no âmbito da Guarda Costeira e da Guarda das fronteiras da periferia. Se essas estruturas geram bens comuns a todos que vão além do que os esforços individuais de cada Estado-membro poderiam conseguir, então devemos ter meios comuns para servir esses bens concretos.
É certo que no domínio da Defesa ainda são mais as perguntas do que as respostas que temos ao nosso dispor. Já no caso da reforma da União Económica e Monetária temos o fundamental da reflexão feita e amadurecida. Sabemos o que temos de fazer. Não podemos desperdiçar a oportunidade que se nos abre. Há coisas que não podemos adiar sob pena de nos arrependermos por ocasião de uma futura crise.
Prosseguir o caminho destas reforma deve constituir um objectivo de primeira grandeza, e não apenas porque deixar tudo como está intensificaria as forças desintegradoras no seio da Europa. O exigente e complexo contexto global requer uma resposta da Europa no sentido da sua afirmação, da sua coerência e do seu fortalecimento. É esse o caminho que temos de percorrer.