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Crónica sobre Lampedusa - um outro olhar a partir da Porta da Europa

Crónica sobre Lampedusa - um outro olhar a partir da Porta da Europa

Artigo de opinião de Isabel Estrada Carvalhais, Deputada ao Parlamento Europeu

Em setembro, a ilha de Lampedusa recebeu em menos de uma semana cerca de 8500 migrantes. Outros jornais falavam em 11 mil (DN, 17.09.23). Outro diário reportava que no dia 12 haviam sido registados ‘...110 desembarques com mais de cinco mil migrantes’ e desde o dia 13 já haviam aportado ‘... mais 23 embarcações, com quase um milhar de migrantes...’ (CM, 13.09.23). As notícias sugerindo a ideia de uma nova vaga massiva de migrantes espalharam-se à velocidade luz, alarmando a sociedade europeia e levando a própria presidente da Comissão Europeia, a uma visita relâmpago, acompanhada pela primeira ministra italiana, Giorgia Meloni, à ilha pelágia de cerca de 20km2 e pouco mais de 6000 habitantes. A este cenário, juntaram-se ainda notícias sobre os protestos de lampedusanos contra a chegada constante de migrantes. Numa notícia da Euronews (17.09) podia ler-se: ‘Os habitantes de Lampedusa manifestaram-se este sábado contra a chegada de cada vez mais migrantes à pequena ilha italiana. A poucas horas de receber a visita da Presidente da Comissão Europeia ... quem vive em Lampedusa exige medidas para gerir e travar o desembarque de milhares de migrantes todos os dias.” O timing não deixa de ser um aspeto curioso. Adiante.

Em várias publicações jornalísticas, adjetivos como ´’vaga’, ‘anómala’, ‘massiva’ e ‘ilegal’ acompanhavam as notícias sobre os desembarques de migrantes em Lampedusa.

Tudo isto é verdadeiro, aconteceu, foi testemunhado por muitas pessoas, autoridades, voluntários de diversas organizações, jornalistas, os próprios habitantes da ilha. Mas, permitam-me agora que vos relate o que eu vi e ouvi em Lampedusa, entre os dias 11 e 13 de outubro, um mês depois, longe de holofotes mediáticos e de grandes visitas oficiais.

Cheguei a Lampedusa no âmbito de uma curta missão que o grupo político dos socialistas e democratas da Comissão das Pescas no Parlamento Europeu há muito havia programado. Fui com enorme apreensão, de coração apertado. Como coordenadora do meu grupo, receava que a missão pudesse ser mal interpretada: ‘afinal como é que alguém tem coragem de vir tratar de pescas, quando temos aqui uma calamidade humanitária?’ era a pergunta que temia.

A primeira imagem após deixar o pequeno aeroporto, desconcertou-me: as belíssimas praias da ilha estavam repletas de turistas, veraneantes outonais lânguidos e despreocupados. Senti uma espécie de pudor e dei por mil a fazer uma pergunta semelhante à anterior ‘como é que as pessoas conseguem estar em lazer numa ilha com tanto sofrimento humano?’

Das conversas que iniciei logo com gente da terra (porque de informações em segunda e terceira mão já andamos todos fartos), percebi que para além da pesca, a grande atividade da ilha é de facto o turismo. Uma atividade fundamental, em expansão, e que os locais muito agradecem. A agricultura é residual, quase tudo tem de vir da Sicília e da Itália continental. Dramas e dificuldades da insularidade que outros ilhéus tão bem conhecem, penso para mim.

A primeira reunião oficial é com as autoridades locais. Somos recebidos com grande cordialidade. Os problemas das pescas, da pesca ilegal dos tunisinos e dos egípcios, do preço dos combustíveis para as embarcações emergem de imediato. A Europa tem de saber como sofrem com a pesca ilegal, é esse o sentimento geral. Pensei que iriam desfiar um role de queixas sobre a chegada dos migrantes. Mas o assunto é apenas vagamente aflorado, porque o foco volta sempre para a pesca ilegal, a contaminação das águas pelas artes que os barcos ilegais abandonam; a pesca ilegal em áreas marinhas protegidas, e com artes que a Europa já nem permite. Acredito que se a nossa missão não fosse de pescas, seriam outros os assuntos em discussão. Mas não posso deixar de constatar que a questão migratória está menos presente e menos à flor da pele do que eu imaginaria possível.

No dia seguinte, falamos com os pescadores. Responderam à chamada com entusiasmo. São sobretudo mestres de embarcações, representantes do setor, gente respeitada pelos camaradas locais. Começam de imediato a expor as suas agruras, dispensando protocolos aborrecidos. Nota-se que têm necessidade de falar, de serem ouvidos. Sentem-se esquecidos, longe de tudo, emerge a questão do preço dos combustíveis, mas sobretudo, a pesca ilegal! É nas suas barbas, todos os dias. ‘Há peixe nosso a ir para a Tunísia e depois a ser vendido de lá para cá!’ diz um pescador indignado. ‘Não respeitam nada nem ninguém. cumprimos com tudo e eles com nada’, atira outro.

E os migrantes? perguntamos. ‘Quando chegam a gente ajuda-os como sempre fizemos!’. Outro acrescenta ‘desde que não voltemos ao tempo do Salvini...’. Refere-se ao período em que Mateo Salvini, então Ministro do Interior em 2018, decidiu criminalizar a ajuda aos migrantes. Mais tarde nesse dia, voltando a recuperar este assunto, Pietro Bartolo recordava a noite em que um pescador lhe telefonou desesperado a perguntar: ‘que faço?! encontrei uns desgraçados no mar, mas se os resgato apreendem-me o barco, pago multa e ainda me enfiam na cadeia! Que faço?!’ A humanidade falou-lhe mais alto, com o amigo Pietro, também ele filho de pescadores, a assegurar-lhe que fosse qual fosse a pena haveriam de arranjar maneira de o livrar. Assim foi.

Mas afinal, onde estão os migrantes? Bartolo leva-nos primeiro ao cais onde atracam as embarcações e onde Meloni e Úrsula haviam estado cerca de um mês antes. Barcaças e barcos exibem despojos de chegadas apressadas e traumáticas. Não há ali beleza ou ordem, apenas caos silencioso de boias, de coletes salva-vidas, de garrafas de água, de plásticos, de roupas e calçado. De seguida vamos ao hotspot. É lá que encontramos os migrantes que ainda aguardam o desfecho da sua passagem por aquela ilha. Alguns chegaram nessa mesma madrugada. Bartolo fora recebê-los às cinco da manhã. Vejo algumas dezenas. Uns conversam, outros estão em silencio. Examinam a nossa presença. Os olhares são calmos e afáveis. Há homens, mulheres e crianças. Quase todos seguram nas mãos os seus telemóveis. Há um espaço exterior onde os podem carregar. Para eles é muito importante, diz-nos uma jovem voluntária da Cruz Vermelha no local, pois é a forma que têm de manter contacto com as famílias e o mundo. Conta-nos que ali os migrantes encontram um primeiro porto de abrigo, de atendimento médico, físico e emocional, e de identificação.

Tento perceber como explica o fluxo extraordinário de pessoas ocorrido no mês passado. Sinto-lhe o olhar enigmático quando me diz que o mecanismo de identificação e de distribuição das pessoas por regra funciona muito bem, é muito rápido. Não sabe porquê, o mecanismo teve problemas de funcionamento nesse período e isso levou ao acumular de pessoas no centro. Tudo isto me levaria a uma longa reflexão que ela, arguta, adivinha no meu olhar e sorri.

Das pessoas migrantes que lá encontrei, do seu olhar, do seu sorriso, não vos escreverei hoje. Nem dos lampedusanos, gente boa, trabalhadora, que está cansada não de ajudar os migrantes, mas da contínua falta de recursos financeiros e humanos e da falta de atenção de outros níveis de governação. Termino apenas com as perguntas de Pietro Bartolo, ele que fez naquela ilha ao longo de quase 30 anos, as autópsias de tantos e tantos cadáveres de crianças e mulheres naufragadas: ‘diz-me Isabel, viste multidões de migrantes? Viste esse grande perigo que quer inva-dir a Europa? Onde estão elas? As crianças que estavam à tua frente, são elas a grave ameaça à Europa? Uma Europa tonta, de quase meio bilião de pessoas, velha, mirrada, sem gente para trabalhar, mas que vê em cada rosto desta po- bre gente um potencial inimigo!’ Termina comovido, enquanto toda a equipa da missão olha a Porta da Europa, num silêncio apenas interrompido pelo mar ali ao pé.